06 janeiro, 2013

De Olhos Fechados

Sentado ali em frente de seu congá, o velho pai de santo relembra com surpreendente nitidez a sua infância e seu primeiro contato com a espiritualidade.

Nitidamente ele se vê na tenra infância a brincar sozinho no amplo quintal da casa de seus pais. Lembra-se que alguma coisa o fez olhar para as nuvens e que, diante dele, uma estranha imagem se formou: um velho sentado ao redor de uma fogueira e um menino a ouvi-lhe estórias. De alguma maneira o menino ao ver aquela cena sabia que se tratava dele mesmo.

O tempo passou e a cena jamais esquecida e também jamais revelada, o acompanhava em sonhos e lembranças.

Ele cresce e acaba se tornando um médium umbandista. Aos poucos vai conhecendo seus guias, que vão tomando seu corpo nas diversas "giras de desenvolvimento".

Primeiro o Caboclo, que lhe parece grande e forte, depois os demais, até que, ao completar 18 anos o seu Exu também recebe permissão para incorporar.

Já não é mais médium de gira. A bem da verdade, ocupa o cargo de pai pequeno do terreiro. Percebe que não tivera uma adolescência como o da maioria dos jovens que lhe cercavam na escola. Não vai a bailes, festas... Dedica-se com uma curiosidade e um amor cada vez maior à prática da caridade.

Os anos passam e ele acaba por abrir seu próprio terreiro. Inúmeras pessoas procuram os seus guias e sempre recebem um lenitivo, uma palavra de consolo e esperança. Foram tantos os pedidos e tantos os trabalhos realizados, que já perdera a conta. Viu inúmeras pessoas, que declaravam amor eterno pela Umbanda, se afastarem criticando o que ontem lhes eram sagrados, porque alguns pedidos não haviam sido alcançados na plenitude desejada...

Presenciou também pessoas que, vindas de outras religiões, encontravam a paz dentro do terreiro.

Este era mantido a duras penas, já que nada cobrava por trabalhos realizados (dai de graça o que de graça recebestes).

Solteiro permanecia até hoje, pois embora tivesse várias mulheres que lhes foram caras, nenhuma delas suportou ficar ao seu lado. Para ele, a vida sacerdotal se impunha a qualquer outro tipo de relacionamento. Mesmo assim, amava todas àquelas que lhe fizeram companhia em sua jornada terrena.

Brincava o velho pai de santo, quando lhe perguntavam se era casado, sempre respondendo bem humorado que se casara muito cedo, ainda menino. A curiosidade dos interlocutores quanto ao nome da esposa era satisfeita com uma só palavra: Umbanda. Este era o nome de sua esposa.

Com o passar do tempo a idade foi chegando. Muitos de seus filhos de fé seguiram seus destinos, vindo a abrir, eles também, suas casas de caridade. O peso da idade não o impede de receber suas entidades e ainda ecoa pelo velho e querido terreiro o brado de seu Caboclo, o cachimbo do Preto Velho perfuma o ambiente, a gargalhada do Exu ainda impressiona, a alegria do Erê emociona a ele e todos... Enfim, sente-se útil ao trabalhar.

Hoje não tem gira, o terreiro está limpo, as velas estão acesas e tudo parece normal. Resolve adentrar ao terreiro para passar o tempo. Perdera a noção das horas. Apura os ouvidos e sente passos ao seu redor. Percebe que alguém puxa pontos e o atabaque toca. Ele está de frente para o congá. O cheiro da defumação invade suas narinas... Seus olhos se enchem de lágrimas na mesma proporção que seu coração se enche de alegria.

Estranhamente, não sente coragem ou vontade de olhar para trás... apenas canta junto os pontos.

Fixa as imagens do altar, fecha os olhos e ainda assim vê nitidamente o congá.

Parece que percebe o movimento do terreiro aumentar, vira de costas para o congá e a cena o surpreende: vê Caboclos, Boiadeiros, Pretos Velhos, Marujos, Baianos, Erês e toda uma gama de Guias. Até os Exus e Pomba Giras estão ali na porteira. Se dá conta que os vê como são - não estão incorporados, todos lhes sorriem amavelmente.

Dentre tantos Guias percebe aqueles que incorporam nele desde criança. Tenta bater cabeça em homenagem a eles, mas é impedido. O Caboclo, seu guia de frente se adianta e lhe abraça, brada seu grito guerreiro sendo acompanhado pelos demais.

O velho pai de santo não aguenta e chora emocionado...

As lágrimas lhe turvam a vista. Ele fecha seus olhos e ao abrí-los, todos os guias permanecem em seus lugares, porém calados...

Nota uma luz brilhante em sua direção. Iansã e Omulú se aproximam. Seu Caboclo os saúda e é correspondido.

A luz o envolve. Já não se sente velho, na verdade sente-se jovem como nunca, seu corpo está leve e levita em direção à luz. Todos os guias lhe fazem reverência.

O terreiro vai ficando longe envolto em luz... Sorri alegre, missão cumprida...

No dia seguinte encontram seu corpo aos pés do congá. Parece que sorri...


Texto de Cássio Ribeiro

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